terça-feira, 15 de abril de 2008

A arte da eterna novidade


“O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de
andar pelas estradas olhando para a direita e para a esquerda, e de vez em quando
olhando para trás... E o que vejo a cada momento é aquilo que nunca antes tinha
visto, e eu sei dar por isso muito bem... Sei ter o pasmo essencial que tem uma
criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras... Sinto-me nascido a cada
momento para a eterna novidade do mundo.” Alberto Caeiro

Torna-se muito difícil conjugar o passado com o novo. Ainda mais se esse passado não estiver, necessariamente, enterrado num cemitério abandonado. Precisamente, estamos no tempo e isso significa que caminhamos na medida em que ele permitir. Fora do tempo tudo se torna nada, no entanto, se permanece inalterado, torna-se eterno.
Em oposição, o novo é temporalidade. É o tempo em constante movimento e mudança. Alberto Caeiro (Fernando Pessoa) casou, de forma brilhante, esses dois fenômenos: a “eterna novidade”. Isso é possível se olharmos e entendermos o homem como ser instável, ou seja, um ser em transformação. Tudo aquilo que se transforma, transforma-se em algo novo, isto é, uma novidade. Se existe transformação é devido ao fato de o objeto em constante mudança ser eterno, ou, pelo menos, ter uma longa existência.
No caso de Alberto Caeiro, o objeto mutável é o mundo, que se transforma constantemente (eterna novidade) causando no poeta o sentimento do nascer a cada momento, ou seja, de descobrir um mundo novo a cada instante de sua vida.
Podemos observar tal sentimento, ou percepção de Caeiro, no correr de nossa vida. Ao lermos um livro encontraremos nele uma mensagem. Se lermos diversas vezes o mesmo livro, teremos, a cada leitura, uma nova percepção dessa mensagem. Ao pintarmos um quadro estamos transferindo a ele nossos sentimentos, por isso, se pintarmos várias vezes inúmeros quadros, a não ser esse houver cópia, estaremos pintando diferentemente a cada um deles.
A arte, portanto, em suas mais diversas composições, transfigura o objeto existente numa outra realidade, que o faz renascer para o mundo. Esse “desvendar” do mundo existente, recriando-o em uma outra dimensão, mostra-nos que é possível tornar “eternamente nova” uma realidade, que não está fora da obra, nem mesmo está contida nela, mas é “a própria obra de arte”.

Maycon Mazzaro
15/04/2008

quinta-feira, 10 de abril de 2008

Testemunhar a esperança que habita em nós

Como cultivar a esperança ante um mundo tão desigual, violento, impetuoso e corrompido? Não seja talvez uma pergunta de fácil resposta e cada um terá de descobri-la eventualmente. Parece que nesse momento tudo está contra a esperança, no entanto, penso que onde houver um verdadeiro sentimento de amor, lá se renova a esperança. Não faço mera cogitação filosófica, muito menos uma reflexão teológica, unicamente cedo meus pensamentos a uma grande verdade: o amor gera esperança. Sempre que existir um verdadeiro amor a história avançará no concretizar das utopias humanas.
A esperança é a menor das três virtudes teologais (fé, esperança e caridade), mas, em nosso tempo de secularização, auto-suficiência e materialismo exacerbado, deve ser a mais apaixonadamente vivida. Como dizia D. Pedro Casaldáliga: uma esperança invencível!
Uma esperança que abata a decepção, o desespero, os erros da família, da sociedade, da política e da igreja, nossos próprios incontritos erros. Que nos leve a acreditar nas pessoas, esperar nelas, apesar das incontáveis amostras de que não podemos fazê-lo. Aqui, todas as elucubrações e teorias meramente ideológicas caem por terra. Nenhum pensamento político-filosófico, entre todas as ideologias existentes, convoca para o amor. E é extremamente necessário amar a todos, sempre, perdendo ou ganhando, arriscando quiçá a própria vida.
Trata-se de utopia? Sejamos então utópicos. O homem e a mulher não vivem só de pão; vivem de pão e de sonhos. Somente aqueles que sonham podem transformar o mundo e fazê-lo caminhar. Assim viveu Jesus de Nazaré, utopicamente, sem medo de sonhar e, sobretudo, com esperança de que sua utopia do Reino se concretizasse.
Somos construtores do futuro e impelidos a dar testemunho do que acreditamos. Ser o que somos. Falar o que cremos. Viver o que falamos. Nossa esperança é a “arma” da qual dispomos para tornar melhor esse mundo. Se amarmos verdadeiramente a vida e, consecutivamente, o mundo em que vivemos, teremos, verdadeiramente, esperança que outro mundo é possível.
Se houver amor, tomara Deus que seja verdadeiro, teremos o “escudo” do qual necessitamos para cultivar a esperança, dando-lhe novas oportunidades a cada dia, para que, contra todas as desesperanças, a caminho da construção de uma Nova Civilização, possamos testemunhar aquela verdadeira esperança que habita em nós.

Soluços de um mundo caduco


Digam-me vocês: como posso descansar os pés numa bacia com ácido? Eles não suportariam sequer meio minuto expostos ao seu poder corrosivo. Assim inicio minha indagação acerca da saúde psíquica deste vasto mundo no qual vivemos. E, aliás, vida é uma coisa da qual nos distanciamos consideravelmente. Viver é um “sonhar acordado”, um “imaginar” da vida plena. Ora, não sou capaz de compreender o significado dos diversos sinais que surgem e desaparecem no nada. Sinais que nos dizem coisas da vida, essa mesma, distante e imaginária.
No crepúsculo de nossa existência, deparamo-nos com a incansável vontade de pular. Isso mesmo, pular, “escolher entre a vida e a morte”, um suicídio consciente e fugaz. É o primeiro sintoma de um câncer que invade o arché do mundo, ou seja, o principio fundamental da vida. A consciência de “pular” é tal como o “desejar viver”, talvez seja o mesmo principio: eu pulo para conhecer a vida. Quem assistiu o filme A Cidade dos Anjos vai entender o que estou dizendo. Nele, o “anjo da guarda” Seth (vivido por Nicholas Cage) descobre que para ser humano deveria pular ou deixar-se “cair”. É uma analogia do suicídio, pelo qual eu morro para uma vida e renasço para uma ainda melhor. Não obstante, temos o teor da fuga. Mesmo consciente da queda, objetivando quiçá uma “outra vida”, deparamo-nos com o medo de enfrentar o mundo tal como ele é. Aqui, pode estar a grande motivação do pular: tenho que fugir para um lugar melhor. O organismo começa a sinalizar que está perdendo a peleja contra o câncer.
Outrora essencial, aqui a vida aparece sem sentido. É um mero detalhe num turbilhão de coisas mais importantes. Como? Um detalhe? Como pode a morada de todas as coisas tornar-se um detalhe qualquer? É isso mesmo, a vida não possui sentido algum para aqueles que desejam pular. Pode-se afirmar que é pela vida que estão pulando, no entanto, pulam porque já a perderam. Controvérsias à parte, só torna-se suicida quem já morreu. Perdeu a hora do trem e apenas avistou, ao longe, o último vagão. Assistiu a vida passar e contentou-se em perdê-la. Tempus Fugit, diria Agostinho de Hipona. O mundo tornou-se caduco e na sua angústia temporal grita perante a vida.
A saúde psíquica da qual me propus a refletir, não é a saúde da mente, da memória ou qualquer coisa que o valia. É a estrutura vital da alma, isto é, a consciência do ser. Estamos diante de um mundo caduco, “sem eira nem beira”, a ponto de uma catástrofe desproporcional. Falam de aquecimento global, de crises civilizacionais, de política (ou a falta dela), de crise nas bolsas de valores, de alianças espúrias nas eleições, enfim, esquecem-se, infelizmente, da vida. Tudo o que o homem faz pode ser usado para o bem ou para o mal da vida, contudo, bem e mal são como dois fios, um amarelo e o outro vermelho, que a toda hora se entrelaçam. Por muitas vezes embaraçam-se de tal forma que fica impossível separá-los. É a prerrogativa usada por aqueles que, não acreditando na vida, desejam pular. Ora, não podemos vencer o mal posto que esteja de mãos dadas com o bem. Mais uma vez o câncer vence a batalha.
Para muitos é salutar a derrota da vida. Não compreendem que sem ela tornamo-nos vazios e opacos. Tenebrosamente paramos, estáticos, frente ao “Grande Demônio” que trucida a humanidade, como eixo e flexa da involução. Um Demônio sem nome e sem rosto, do qual todos, piedosamente, fogem desesperados. Novamente o mal e o bem caminham juntos – ou como canta Raul Seixas: “de mãos dadas num romance astral” – e arrastam parte dos que perderam o trem. Na Ásia, o Dalai-Lama luta pela libertação de todo o povo tibetano, subjugado desde 1951 pela China, que, usando da violência ditatorial, reprime e mata manifestantes que prezam o direito de serem livres. Os grandes do ocidente interferem, até com violência, em questões de países pobres e fracos, mas ao tratar-se de uma “grande potência”, preferem o silêncio estático e sombrio. A vida continua ameaçada.
Como posso descansar os pés numa bacia com ácido? Não posso, é a resposta. Por que pular se posso descer com meus próprios pés? Por que fugir se devo enfrentar decididamente o câncer que nos acomete? Se quero viver uma “nova vida” preciso, antes, tratar de curar a qual vivo neste instante. É profunda a dor do parto, mas é preciso “partir” para chegar a tempo de subir no vagão da história e des-enrolar o bem do mal. Revitalizar a vida do que antes era um seco deserto. O que nos levará a isso? Sim, o que nos anima, a consciência de ser humano, de estar vivo e de ter domínio sobre a bacia, jogando o ácido pelo ralo e depositando água pura. Nietzsche já dizia: “Sei de onde venho! Insatisfeito como labareda ardo para me consumir. O que toco torna-se luz, carvão quando abandono: sou, com certeza, labareda”. Não podemos viver a vida sem antes sonhá-la.

Maycon D. Mazzaro
19.03.2008

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