sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Natal

Recebi um cartão de natal de um companheiro, nele pedia perdão por tanta desigualdade celebrada nesta data santa. Pedia perdão por esbanjarmos tanto enquanto milhões de pessoas vivem na miséria. Que natal podemos celebrar em nossas casas, com nossas ceias e abraços apertados, quando, no mesmo momento, há crianças abandonadas pelas ruas de nossas cidades? Enquanto trocamos presentes e comemos do melhor, adolescentes e jovens fumam crack e cheiram pó nas biqueiras e esquinas dos centros e periferias. Mas não digo que perdemos o verdadeiro sentido do natal, o que perdemos foi nossa humanidade.

Jesus nasceu na rua, fora de casa, entre animais, num curral “porque não havia lugar para sua família na pousada”. No evangelho vemos claramente que Jesus “veio para o que era seu e os seus não o receberam”. Esta é a sua missão fundamental: estar junto dos sem teto, dos sem terra, dos que não possuem lugar social. É exatamente para eles que Deus dirige, primeiramente, sua Palavra. Esta é a certeza da encarnação do Criador: Ele se identifica com os que não têm onde repousar a cabeça.

Todos os dias vemos a realidade chocante de milhões de crianças abandonadas, sofrendo as dores das ruas, sobrevivendo de pequenos furtos, ameaçando a tranqüilidade daqueles que os esqueceram. Deparamos-nos com a situação de violência de milhões de meninas que se prostituem para ajudar em casa, meninas que não vêem outra possibilidade de vida ou que são obrigadas a vender seus corpos por míseros trocados. São os negros que carregam no corpo e na alma as chagas da discriminação. São aqueles indígenas que sobreviveram ao genocídio do “descobrimento”, expulsos das terras que por direito natural sempre foram suas. São os milhões de sem-terras que, revivendo a história de Abraão, caminham pelas estradas marginais da sociedade em busca de terra para morar e trabalhar. Quantos trabalhadores, empobrecidos historicamente, que ainda se sentem privilegiados por serem explorados pelo capitalismo, ao mero preço de uma carteira assinada e dos magros benefícios da previdência social. São os servidores explorados e abusados pelo descaso imenso com que os empregadores lhes tratam, tirando-lhes o direito de pensar, de querer algo melhor para suas vidas.

Aqui estão os esquecidos, aqueles com os quais Deus se identifica, irmãos e irmãs mais pequenos de seu Filho, encarnado em nossa miséria. Eles gritam em preces e lamentos o mesmo sofrimento que o povo hebreu sentiu no Egito: “Queremos viver! Até quando, Senhor, até quando nos fazes esperar a tua vinda, tua justiça e ternura, tua paz?”

O Natal é o momento em que estas lamentações foram ouvidas. Deus deixa sua luz inacessível e seu sacrossanto mistério e faz morada no meio dos humilhados e ofendidos. Faz-se criança que chora entre animais, nas calçadas de Belém. É Cristo que diz aos miseráveis: “Vocês são meus irmãos e irmãs, filhos e filhas do meu Pai querido. Para vocês eu quero ser o Deus presente. Enxugarei todas as lagrimas de seus olhos e serei a vida e o direito que tanto buscam. Meu nome é Jesus, o Deus Libertador, alegria para todo o povo”.

A cada ano, em todo Natal, Deus procura em cada um de nós uma nova manjedoura, um presépio vivo, no qual possa nascer. E também no qual possa confiar o cuidado de seus filhos pequenos.

Meus irmãos e irmãs, nesse dia precisamos olhar para nossos morros, favelas, para os pobres de nossas ruas. Olhar profundo, com a fé que recebemos e que experimentamos no dia-a-dia de nossa vida: Os miseráveis estão grávidos de Jesus Cristo, que quer nascer de novo através da solidariedade, da compaixão, da fraternura e do amor.

Façamos a nossa parte neste Natal, sejamos para os empobrecidos a presença de Jesus Ressuscitado, o presépio onde possam ser abraçados e tenham onde repousar a cabeça.

De nada vale Jesus nascer em Belém
Se
não nascer em ti de novo.

Não o busques no além.
Faça-o nascer do povo.

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

Sofrimentos...

Quantas pessoas não se entregam todo dia ao sofrimento? Não estamos preparados para ele. Nunca estivemos. O grande problema do homem é o medo de ser humano. Nossos limites nos mostram que somos inacabados, que necessitamos de amadurecimento e que nossas raízes devem ser cuidadas todos os dias. A negação do limite pessoal nos impõe o sofrimento de nos sentir fracassados, frustrados com o que não deu certo, com o que passou do limite.

O medo que temos de assumir a nossa limitação, a nossa condição humana, torna nosso sofrimento cada vez mais forte. E o cuidado que temos de ter é o de não assumirmos o sofrimento como condição vital. Dizia Nietzsche que quem luta com monstros deve ter cuidado para não se transformar em monstro. O sofrimento é o monstro que aterroriza aqueles que nele acreditam. É o fantasma que ronda nossos sonhos e que se alimenta abundantemente dos nossos medos. Devemos olhar nos olhos desses fantasmas e decidir se eles realmente merecem tamanho respeito.

O medo de sermos limitados não pode impedir que nossas vidas continuem. A dor que o sofrimento emplaca não pode ser maior que a esperança de superá-la. Se olharmos muito tempo para o abismo, o abismo também olhará para dentro de nós. E isso nos impede a possibilidade de viver.

Viver é a capacidade de transformar-se a cada dia. Mudar. Reformar o que está ruim. Se entendermos que nossos limites são importantes para nosso crescimento, aprenderemos a lidar com nossas mágoas e decepções. Se confiarmos que possuímos o potencial de curar feridas, seremos capazes de ultrapassar barreiras e vencer sofrimentos. O principal de tudo isso é acreditarmos em nós mesmos e nas possibilidades de transformação que aparecem em todos os momentos de nossa vida.

sábado, 27 de novembro de 2010









Senhor,
Quando eu tiver fome,
dai-me alguém que necessite de comida.
Quando tiver sede,
dai-me alguém que precise de água.
Quando sentir frio,
dai-me alguém que necessite de calor.
Quando tiver um aborrecimento,
dai-me alguém que necessite de consolo.
Quando minha cruz parecer pesada,
deixe-me compartilhar a cruz do outro.
Quando me achar pobre,
ponde a meu lado alguém necessitado.
Quanto não tiver tempo,
dai-me alguém que precise de alguns dos meus minutos.   
Quando sofrer humilhação,
dai-me ocasião para elogiar alguém.   
Quando estiver desanimada,
dai-me alguém para lhe dar novo ânimo.   
Quando sentir a necessidade da compreensão dos outros,
dai-me alguém que necessite da minha.   
Quando sentir necessidade de que cuidem de mim,
dai-me alguém que eu tenha de atender.   
Quando pensar em mim mesma,
voltai minha atenção para outra pessoa.  
Tornai-nos dignos, Senhor, de servir nossos irmãos
que vivem e morrem pobres e com fome, no mundo de hoje.
Dai-lhes, através das nossas mãos, o pão de cada dia
e dai-lhes, graças ao nosso amor compassivo,
a paz e a alegria.
(Beata Tereza de Calcutá)

sábado, 20 de novembro de 2010

Mãe do Bom Conselho, ora por nós...

O povo te chama de Nossa Senhora
Por causa de Nosso Senhor
O povo te chama de Mãe e Rainha
Porquê Jesus Cristo é o Rei do céu
E por não ti ver como desejaria
Te vê com os olhos da fé
Por isso ele coroa a tua imagem Maria
Por seres a mãe de Jesus
Por seres a mãe de Jesus de Nazaré
Como é bonita uma religião
Que se lembra da mãe de Jesus
Mais bonito é saber quem tu és
Não és deusa, não és mais que Deus
Mas depois de Jesus, o Senhor
Neste mundo ninguém foi maior

Aquele que lê a palavra Divina
Por causa de Nosso Senhor
Já sabe que o livro de Deus nos ensina
Que só Jesus Cristo é o intercessor
Porém se podemos orar pelos outros
A Mãe de Jesus pode mais
Por isto te pedimos em prece oh! Maria
Que leves o povo a Jesus
Porquê de levar a Jesus entendes mais
Como é bonita uma religião
Que se lembra da mãe de Jesus
Mais bonito é saber quem tu és
Não és deusa, não és mais que Deus
Mas depois de Jesus, o Senhor
Neste mundo ninguém foi maior

Nosso último grande Herói


domingo, 14 de novembro de 2010

Um tributo à poesia...


A poesia sempre esteve presente em minha vida. Escrever é dar um pouco da própria alma a quem lê. Na ação de escrever está velado o mistério, o inusitado, o imprevisível, que convivem com a poesia. Nos pedaços em que ela se cala, entre uma linha e outra, surge o poeta. Victor Hugo dizia que “há pensamentos que são orações. Há momentos nos quais, seja qual for a posição do corpo, a alma está de joelhos”. A poesia nos coloca, diante das palavras, em profundo estado de contemplação. É exercício respiratório, catarse, espasmo, oração, orgasmo. Apesar da consternação de nem sempre conseguir expressar o que deseja, o poeta traduz em linhas e rabiscos o que sente na alma.

Dizia eu que a poesia faz parte da minha vida. Sempre gostei de ler, de escrever, mesmo que fossem besteiras futebolísticas em um caderno velho. Cresci lendo as estórias de mistérios do escritor Pedro Bandeira, que me convidava, a cada linha, a mergulhar no oceano de aventuras de sua imaginação literária. Já na adolescência, conheci e me apaixonei pelos escritos de Alberto Caeiro (Fernando Pessoa), que se dizia “Guardador de rebanhos”. Nesta época, tive minhas primeiras experiências poéticas. Escrevia muito – tão pouco se aproveitava – sobre tudo e, principalmente, sobre as revoltas da adolescência. Escrever nesta fase da vida me possibilitou um considerável autoconhecimento.

Veio a juventude e os primeiros passos acadêmicos. A história me fascinava. Conheci as obras de Bertold Brecht, o poeta da cidade, que com maestria soube pensar e escrever a respeito do homem urbano e de sua sociedade. Iniciei o curso de filosofia e experimentei a poesia apaixonante de Goethe. Na mesma época, nas aulas da professora Constância Terezinha Marcondes César, pude chocar-me com o imaginário poético-filosófico de Gaston Bachelard, para quem a imaginação é “a própria experiência da abertura, a própria experiência da novidade”. Ainda nesta fase, conheci uma outra forma de contemplar a vida com a poesia: falo de Johann Sebastian Bach e sua magnífica obra. Ouvir Bach é mergulhar de olhos fechados na misteriosa aventura de apaixonar-se.

A poesia tornou-me mais humano. A experiência da leitura-degustação poética deu-me a oportunidade de sentir as palavras como se fossem vivas – e descobri que elas realmente estão vivas. A filosofia ganhou nova clareza e a teologia, novo conceber. Passei a ler os Evangelhos com o gosto de quem experimentava uma fruta saborosa. As palavras passaram a dar sentido fundamental às coisas. A palavra passou a ser companhia necessária. Ganhei muito com a leitura de grandes poetas, mas também me nutri com a paixão e a utopia dos escritos proféticos do Padre Zezinho, de Dom Pedro Casaldáliga e Dom Hélder Câmara. Refleti muito com as palavras perturbadoras de Leonardo Boff, Jon Sobrino e Santo Agostinho. Fui seduzido pela contemplação poética de Santa Teresinha do Menino Jesus, com a qual, verdadeiramente, tive inúmeros devaneios passionais.

O professor Gabriel Chalita me apresentou a obra encantadora de uma mineira, Adélia Prado. Ela planta flores na borda do vazio existencial, produz obras que perturbam os sentidos e propõem uma nova concepção estética de inserção do sujeito em seu contexto social. Adélia espelha flagrantes da cultura, paixões, anseios e realizações do humano e tantas formas de expressão da vida. Essa vida que, fecundada pela semente do fascínio que se escorre nas veias do discurso, faz-se transfigurada, a cada página desvelada, a cada mistério perscrutado com beleza, engenho, arte e sutileza.

Os artistas possuem a fantástica capacidade de nos presentear com o Belo. Experiência presente nos versos da Legião Urbana, do Teatro Mágico e nas letras exuberantes de Humberto Gessinger e Herbert Viana.

A poesia me encanta, me revela Deus presente em cada verso. Continuo escrevendo, quando me resta tempo. Queria eu que todo tempo fosse momento de escrever. Isso é impossível, mas temos a possibilidade de fazer poesia com a vida, escrevendo cada dia um novo verso, inundado por Deus e repleto de magia. Palavras são portas que se abrem para quem nelas quer entrar.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Na varanda... ponte, lua e sol

Na varanda...
Onde o ar anda depressa
Vai embora na conversa
Nossa pressa de ficar

Na varanda...
Onde a flor se arremessa
Onde o vento prega peça
Nos traz festa pelo ar

Na varanda...
A criança se debruça
Mãe, menina ainda fuça
Nos cabelos a ninar

Na varanda...
Onde a lua se levanta
Nossa rede se balança
Serenata pra acordar

Joga a trança
Busca o chão e não o céu
Qual barquinho de papel
Sonha ir de encontro ao mar

E a noite vem
Sendo o descanso do sol
E a ponte vem
Sendo a distancia de quem tá só

Um sol
Com a cabeça na lua
A lua que gira, que gira, que gira...

E a noite vem
Sendo o descanso do sol
E a ponte vem
Sendo a distancia de quem tá só

Um sol
Com a cabeça na lua
A lua que gira, que gira, que girassol


(Teatro Mágico)

sábado, 16 de outubro de 2010

TROPA DE ELITE 2

Por Padre Caio Augusto de Andrade


Todo bom filme não depende apenas da qualidade de sua produção ou do bom desempenho de seu elenco, mas dos elementos interpretativos que são oferecidos aos seus expectadores e os ajudam a entender melhor a realidade deles. Com um realismo frio e violento, ora com uma linguagem vulgar das ruas (com 135 palavrões) e ora com uma narração sapiencial de quem procura uma sabedoria de vida, Tropa de Elite 2 é um filme que nos ajuda e entender a nossa realidade humana, principalmente, o ideal de pessoa humana.

A sua direção soube captar esse ideal de ser humano o qual a maioria dos brasileiros projeta, mesmo que eles nunca consigam alcançá-lo. Trata-se de um modelo de herói que se constrói em torno do Capitão Nascimento (Wagner Moura). Assim como os heróis clássicos da Grécia antiga (Ulisses, Aquiles, Nestor e Menelau nos poemas Odisseia e Ilíadas), Capitão Nascimento, apesar de ser um fracasso na vida pessoal e familiar, possui uma virtude (arete) que é constante nos dois filmes Tropa de Elite: a incorruptibilidade. A sua luta não é só contra os ladrões e bandidos, mas contra o vício: a corrupção. O que busca é a purificação das pessoas e todo sistema policial e político.

Esse ideal pressupõe o ethos dos brasileiros, isto é, o nosso modo de ser, pensar e de relacionar. O esse ethos mostra, ao mesmo tempo, uma imagem negativa e positiva de nós mesmos. Negativa porque confirma que a maioria dos brasileiros é corrupta. Positiva porque constata a existência de uma vontade honrosa de virtude como a incorruptibilidade.

Portanto, a luta do capitão Nascimento nos questiona sobre o que ou quem deixa as pessoas melhores hoje. Seriam as escolas cujos professores não se sentem estimulados a educar na virtude? Seriam as igrejas cuja missão consiste em expandir e arrepanhar o maior número de fiel, mesmo a custa da exploração dos vícios e ambições humanas por meio de uma teologia da prosperidade? Seriam os pais que passam o maior tempo longe de suas famílias por causa do trabalho? Seriam as leis que se fundamentam mais nos direitos humanos do que nos deveres humanos?


terça-feira, 12 de outubro de 2010

Nossa Senhora e Mãe Aparecida: o Sim para Deus e para os homens


Maria do sim. É isso que celebramos no dia de hoje. Não é o dia de uma deusa, pois Maria não é deusa e nem quer ser uma. Ela sempre soube se recolher a sua insignificância, a humildade sempre fez morada naquela mulher: “A minha alma engrandece o Senhor... porque Ele olhou para a humildade de sua serva”. Celebramos a mulher Maria, que no absurdo de sua vida acolheu o Amor de Deus, dizendo sim a Sua vontade e vivendo inteiramente para revelar aos homens o rosto humano do Criador.

Maria viu-se diante de um imenso mar, cercada de fortes ondas e bravos ventos. Não desistiu. Seu sim foi verdadeiro, corajoso e revolucionário. Frente a ela estava uma cultura preconceituosa, na qual a mulher era tratada com desprezo e submissão. Mas Maria, uma simples mulher, ergueu-se de forma inexplicável, seu olhar era pura caridade, seu colo era fortaleza. Vivia a pobreza de uma sociedade desigual, a perseguição de uma religião fundamentalista e a incompreensão de seus próprios irmãos e amigos. Não desistiu. Era impossível, a partir de sua escolha, voltar atrás. O Espírito Santo a impelia a seguir no caminho que o Criador lhe havia preparado. O vento forte que a balançava e a levava adiante era o Amor de Deus, para o qual seu sim era definitivo.


Não dá mais pra voltar, o barco está em alto mar
Não dá mais pra voltar, o barco está em alto mar

Não dá mais pra negar
o mar é Deus e o barco sou eu
E o vento forte que me leva pra frente
é o amor de Deus.

Não dá nem mais pra ver o porto que era seguro
Eu sou impulsionado a desbravar um novo mundo.

O que celebramos hoje, pode até parecer incompreensível aos olhos de muitos, é mais do que uma simples mulher, é o sim que trouxe ao mundo o Salvador. É a humilde certeza que em Aparecida, em meio à escravidão e perseguição aos negros e pobres, uma pequena imagem, suja de cera e fragilizada pela água do rio, trouxe aos pequenos e oprimidos: “Deus está olhando por nós!”. A certeza era o significado que aquela pequena imagem trazia: a Libertação está próxima, nosso Deus caminha conosco. É só dizer Sim e prosseguir, não desistir, acreditar que somos um barco impulsionado pelo Amor de Deus a desbravar um Mundo Novo.

Nossa Senhora Aparecida – Mãe Cidinha – Padroeira do Brasil, Senhora dos povos sofridos desta terra, Patrona dos pequenos e oprimidos – rogue por todos nós, seus filhos. Assim seja!

domingo, 10 de outubro de 2010

As memórias são os outros.

Nossa vida é feita de memórias. Construímos a história a partir das memórias que temos, memórias que nos constroem a cada instante. Cada pedaço de mim que ficou pelos caminhos trilhados, pelas esquinas que passei procurando por algo que nem mesmo eu sabia o que era, tem em si o poder de falar de mim, das minhas experiências, das minhas dores e alegrias. Inúmeros objetos podem trazer consigo memórias que me tocam, pois me fazem lembrar de momentos singulares de uma vida que está em construção. Mais que objetos, as pessoas trazem em si a relevância de experiências que me fizeram crescer, amadurecer. Pessoas que me ensinaram a caminhar mais do que eu mesmo imaginava conseguir. E quando recordo dessas pessoas eu só posso cantar:

Quando a solidão doeu em mim
Quando
meu passado não passou por mim
Quando eu não soube compreender a vida
Tu vieste compreender por mim

Quando posso parar um instante, faço memória das pessoas que me ajudaram pelo caminho. Quando aquelas mãos evitaram a minha queda ou mesmo quando elas não quiseram evitá-la, mas me ajudaram a levantar. Companheiro de verdade é esse, que sabe ler os sinais, propõe novas possibilidades mas não tiram de nós a autonomia da escolha. Se é pra evitar a queda, ele está lá; se a queda aconteceu, suas mãos me inspiram e ajudam a continuar.

Quando os meus olhos não podiam ver
Tua mão segura me ajudou a andar
Quando eu não tinha mais amor no peito
Teu amor me ajudou a amar

Sim, nossa vida é feita aos poucos. Estamos constantemente lembrando e esquecendo de nossa memória. Partimos e sentimos a dor de partir. Nossas lágrimas mostram a expressão de uma liberdade que só pode existir dentro de cada um. E como nós queremos essa liberdade! Carregamos a herança de nosso passado. Somos uma reunião de experiências, determinando uma construção que está ainda no começo. Há pessoas que nos fazem lembrar que também somos feitos de sonhos. Pessoas que transformam nossas “vidas secas” em lagoas e mares azuis, cheios de esperança. A essas pessoas, as mais belas memórias de um mundo vivo dentro de nós, desejo que sejam sempre assim: memórias vivas.

Quando o meu sonho vi desmoronar
Me trouxeste outros pra recomeçar
Quando me esqueci que era alguém na vida
Teu amor veio me relembrar

Relembro assim, minha vida eu construo assim. Recolho os pedaços que ficaram pelas esquinas e peço ajuda para junta-los. Sou um ser inacabado e só posso ser terminado quando todas as minhas memórias estiverem acesas e vivas dentro de mim. Eu sou assim.

Tens o dom de ver estradas
Onde eu vejo o fim
Me convences quando falas
Não é bem assim
Se me esqueço, me recordas
Se não sei, me ensinas
E se perco a direção
Vens me encontra...

Tens o dom de ouvir segredos
Mesmo se me calo
E se falo me escutas
Queres compreender
Se pela força da distância
Tu te ausentas
Pelo poder que há na saudade
Voltarás...

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Instrumentos de Paz!


Senhor, Deus dos humilhados, faça de mim um instrumento de sua Paz:
Onde o ódio dilacerar a alma, que eu possa revelar a presença do Amor;
Onde as relações estiveram fragilizadas por ofenças, que eu possa mostrar o caminho do Perdão;
Onde a discórdia separar os homens, que eu possa tecer Comunhão;
Onde a dúvida e a incerteza apagar a razão, que eu possa reacender a chama da Fé;
Onde os erros levarem os homens à iniquidade, que eu possa apresentar a Sua Verdade;
Onde o desespero matar a vontade de transformação, que eu possa alimentar a Esperança;
Onde a tristeza ferir os corações, que eu possa contagiar com minha Alegria;
Onde o vazio e as trevas levarem os homens ao absurdo, que eu possa refletir a Sua Luz.

Mestre, Sabedoria e Caridade absoluta, que eu procure ser antes de ter;
Que eu busque mais consolar que ser consolado,
Compreender que ser compreendido,
Amar que ser amado.

É dando que receberemos,
É perdoando que seremos perdoados
E é morrendo que viveremos a Vida Eterna.

Assim seja!


(São Francisco de Assis, rogue por todos nós!)

sábado, 2 de outubro de 2010

Amigos e Santos: O jardim começa na plantação


"Somente onde há sepulturas há também ressurreições"

(Nietzsche)


Amigo. Santo. Gosto de conversar com meus amigos, pessoas com as quais tenho prazer de compartilhar a vida, ideias e reflexões. Não espero que eles pensem como eu, que estejam de acordo com minhas palavras. Seus rostos são diferentes do meu e se convivemos tranquilamente com essa diferença, porque desejar que nossas ideias sejam iguais? Além dos rostos, nossas experiências são imensamente diferentes, o que faz da relação uma construção. Experimentar a diferença é o que realça a verdadeira amizade. Penso também nas relações dos casais de namorados e casados, quantas delas chegaram ao fim simplesmente porque faltou o prazer de compartilhar ideias? A paixão passa rápido demais e não há amor que sobreviva apenas de sentimentos subjetivos, sem a presença do diálogo, da partilha. Não basta compartilhar a vivencia na mesma casa, quando a mais importante casa – a alma – está vazia e desabitada.

Santos – para a Igreja Católica – são pessoas comuns que, alimentadas pela fé, testemunharam o amor de Deus entre os homens e tornaram-se dignas de serem exemplos para toda comunidade dos fiéis. As esculturas dos santos trazem imagens de pessoas tristes, figuras sofredoras e melancólicas. Há uma explicação para isso: grande parte dos santos foi assassinada em nome da fé, por isso as imagens com feridas, espadas e punhais. Penso diferente neste ponto. Se alguém sacrificou a própria vida pela fé, o martírio torna-se glória e o sofrimento, eterna felicidade. Não que a morte deva ser desejada por aqueles que testemunham o Reino de Deus, mas não vejo Jesus de Nazaré, torturado e assassinado, com feição triste por ter dado a vida pela humanidade. O próprio Jesus afirmava que o grão que não morre não frutifica. Também o filósofo Nietzsche acreditava nisso: “Somente onde há sepulturas há também ressurreições” (Assim falou Zaratustra). A palavra “Santo” tem um significado muito bonito, é aquele que foi separado do profano, tornando-se sagrado. Os santos deveriam ter imagens mais mansas e calmas, com rostos felizes por terem encontrado o caminho do sagrado. Rubem Alves diz que “um santo seria uma pessoa que planta jardins e vive neles”. O jardim é no que devemos transformar o mundo, plantando rosas, orquídeas, hortênsias... flores que perfumam nossas vidas. Mas, continua Rubem Alves, os olhos dos santos da Igreja não sorriem para os jardins. Eles vivem neste vale de lágrimas, habitado pelos degredados filhos de Eva, e olham incessantemente para o Céu, chorando e expressando seu espanto para com a criação: “Por quê, meu Deus?” – como se o Criador tivesse culpa pelo que transformamos seu lindo jardim.

Fico feliz quando tenho a oportunidade de compartilhar a minha vida com meus amigos. Falo muito de muitas coisas, mas falo principalmente sobre o que minha alma está sentindo. Tenho feridas que precisam ser cicatrizadas e meus amigos são remédios para minhas dores. E quando são eles que precisam de remédio, meu sorriso e meu abraço estão sempre abertos para acolhê-los. Talvez, o que falta aos que escolhem as feições e imagens dos santos é a percepção de que eles encontraram o sorriso e o abraço de Deus. Olhar e me ver nos olhos de um amigo torna-me feliz. Vejo-me nos olhos do outro. Percebo que também estou nos olhos de Deus. O sofrimento das pessoas se dá por terem se afastado dos outros, do espaço no qual encontrariam Deus. É o encontro que eu teço todos os dias com meus amigos, com todos os seus absurdos, que me salva. A experiência de sentir-se amado tem o poder de dissolver todos os absurdos. Também quero ser santo, desejo isso todos os dias, e morreria defendendo o que considero Sagrado. Quero ser santo junto dos meus amigos, olhando em seus olhos, trocando ideias, compartilhando o pão. E a imagem que espero que levem e tenham de mim é de um rosto sorridente e feliz, de quem experimentou o amor de Deus no olhar, no sorriso e no amor dos meus amigos. O mundo está a nossa frente, cabe a nós plantar o jardim.

sábado, 11 de setembro de 2010

O Caderno



Composição: Toquinho / Lupicínio Roderigues


Sou eu que vou seguir você
Do primeiro rabisco
Até o be-a-bá.
Em todos os desenhos
Coloridos vou estar
A casa, a montanha
Duas nuvens no céu
E um sol a sorrir no papel...

Sou eu que vou ser seu colega
Seus problemas ajudar a resolver
E acompanhar nas provas
Bimestrais, você vai ver
Serei, de você, confidente fiel
Se seu pranto molhar meu papel...

Sou eu que vou ser seu amigo
Vou lhe dar abrigo
Se você quiser
Quando surgirem
Seus primeiros raios de mulher
A vida se abrirá
Num feroz carrossel
E você vai rasgar meu papel...

O que está escrito em mim
Comigo ficará guardado
Se lhe dá prazer
A vida segue sempre em frente
O que se há de fazer...

Só peço, a você
Um favor, se puder
Não me esqueça
Num canto qualquer...

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Pedras lapidadas

Assim como a pedra mais preciosa, para chegar ao seu formato mais bonito, precisa ser lapidada, também o ser humano carece ser trabalhado. “Lapidar” o ser humano é um trabalho difícil e sensível, e podemos chamá-lo de construção de sentido. Dar sentido às coisas é ato de amor. O “belo” da pedra preciosa não pode se limitar ao seu atrativo estético e exterior. O “belo” precisa ser percebido nos detalhes, descobrir que algo daquela beleza está além das suas formas, algo que chama, que fala à minha experiência de vida, como se aquela beleza fizesse falta ao imperfeito que sou.

Ato de amor. O amor é a capacidade de ver o outro de forma diferente. Em meio à multidão você percebe o outro, ele se torna especial, tem um sentido para sua vida. O ato de amor, que é dar sentido às coisas, é esse “retirar” o outro da multidão, separá-lo do comum para um lugar especial. Necessariamente, amar é descobrir a sacralidade do outro. Descobrir, perceber o sentido que as coisas têm para mim é lapidar o diamante sem forma, dando-lhe contornos indizíveis. É deixar de lado a superfície e atingir o mais profundo.

A vida humana é um imenso garimpo, onde os garimpeiros procuram as pedras mais preciosas. Nela os diamantes ainda permanecem preservados. O amor é revelação, inauguração, tem o poder de transformar aquilo que é velho em novidade. Mudar a pedra sem brilho no mais brilhante tesouro. Pode parecer surpreendente, e certo que é, mas o amor tem o poder de retirar a lasca, de curar a ferida, de imprimir um novo sentido ao que antes era apenas pedra, dura e suja. É o milagre da transubstanciação, quando, por força do amor, podemos fazer uma realidade ser outra. O ser humano é assim, quando tocado pela força transformadora do amor, abre-se para uma nova realidade. Mas o que nele é transformado, os olhos humanos despreocupados não conseguem ver. É algo que não podemos compreender, é o humano sendo banhado pelo divino, é o sentido daquilo que amamos nos falando, dando-nos novo sentido para a vida.


segunda-feira, 23 de agosto de 2010

AS NORMAS DO MOTU PROPRIO “SACRAMENTORUM SANCTITATIS TUTELA” (2001)

Fonte portuguesa: http://www.vatican.va/resources/resources_introd-storica_po.html

O Código de Direito Canónico (Codex iuris canonici) promulgado por Bento XV em 1917 reconhecia a existência de um certo número de crimes canónicos, ou "delitos", reservados à competência exclusiva da Sagrada Congregação do Santo Ofício que, como tribunal, era governada por uma lei própria (cf. cân. 1555 do CDC de 1917).

Poucos anos depois da promulgação do Código de 1917, o Santo Ofício emanou uma Instrução, a Crimen sollicitationis (1922), que dava instruções pormenorizadas a cada uma das Dioceses e aos tribunais sobre os procedimentos a serem adoptados quando se deviam tratar o delito canónico de solicitação. Este gravíssimo delito referia-se ao abuso da santidade e da dignidade do sacramento da penitência por parte de um sacerdote católico, que solicitasse o penitente a pecar contra o sexto mandamento, com o confessor ou com outra pessoa. A normativa de 1922 tinha a finalidade de actualizar à luz do novo Codex iuris canonici as indicações da Constituição Apostólica Sacramentorum poenitentiae promulgada pelo Papa Bento XIV em 1741. Deviam-se considerar diversos elementos que ressaltam a especificidade dos casos (com aspectos menos relevantes sob o ponto de vista do direito penal civil): o respeito da dignidade do sacramento, a inviolabilidade do sigilo sacramental, a dignidade do penitente e o facto de que em muitos casos o sacerdote acusado não podia ser interrogado sobre tudo o que tinha acontecido sem pôr em perigo o sigilo sacramental. Portanto, este procedimento especial baseava-se num método indirecto de alcançar a certeza moral necessária para chegar a uma decisão definitiva sobre o caso. Este método indirecto incluía que se investigasse sobre a credibilidade da pessoa que acusava o sacerdote e a vida e o comportamento do sacerdote acusado. A própria acusação era considerada como uma das acusações mais graves que se podiam mover contra um sacerdote católico. Portanto, o procedimento teve o cuidado de garantir que o sacerdote que podia ser vítima de uma acusação falsa ou caluniosa fosse protegido da infâmia enquanto não se provasse a sua culpabilidade. Isto foi garantido pela estreita confidencialidade do próprio procedimento, orientada para proteger de uma indevida publicidade todas as pessoas envolvidas, até à decisão definitiva do tribunal eclesiástico.

A Instrução de 1922 incluía uma breve secção dedicada a outro delito canónico: o crimen pessimum, que tratava o comportamento homossexual por parte de um clérigo. Esta ulterior secção determinava que os procedimentos especiais para os casos de solicitação fossem aplicados também para este caso; com as necessárias adaptações devidas à natureza do caso. As normas relativas ao crimen pessimum eram alargadas ao odioso crime do abuso sexual de crianças pré-puberais e à bestialidade.

Portanto, a Instrução Crimen sollicitationis nunca pretendeu representar a inteira policy da Igreja católica acerca de comportamentos sexuais impróprios por parte do clero, mas unicamente instituir um procedimento que permitisse responder àquela situação totalmente singular e particularmente delicada que é a confissão, na qual à completa abertura da intimidade da alma por parte do penitente corresponde, por lei divina, o dever de absoluta confidencialidade por parte do sacerdote. Só progressivamente e por analogia ela foi alargada a alguns casos de comportamento imoral de sacerdotes. A ideia de que é necessária uma normativa orgânica sobre o comportamento sexual de pessoas com responsabilidade educativa é bastante recente, por isso representa um grave anacronismo pretender julgar nesta perspectiva os textos normativos canónicos de grande parte do século passado.

A Instrução de 1922 foi enviada aos Bispos que tivessem a necessidade de tratar casos particulares relativos à solicitação, à homossexualidade de um clérigo, ao abuso sexual de crianças e à bestialidade. Em 1962, o Papa João XXIII autorizou uma reimpressão da Instrução de 1922 com um breve acréscimo sobre os procedimentos administrativos nos casos que envolvessem clérigos religiosos. As cópias da reimpressão de 1962 deveriam ter sido distribuídas aos Bispos reunidos no Concílio Vaticano II (1962-1965). Algumas cópias da reimpressão foram entregues aos Bispos que, entretanto, precisavam de tratar casos reservados ao Santo Ofício; contudo, a maior parte das cópias nunca foi distribuída. As reformas propostas pelo Concílio Vaticano II obrigavam também a uma reforma do Codex iuris canonici de 1917 e da Cúria romana. O período entre 1965 e 1983 (o ano em que foi publicado o novo Codex iuris canonici para a Igreja latina) foi marcado por diferentes tendências entre os estudiosos de direito canónico em relação à finalidade da lei penal canónica e à necessidade de uma abordagem descentralizada dos casos, valorizando a autoridade e o discernimento dos Bispos locais. Foi preferida uma "atitude pastoral" em relação aos comportamentos inoportunos; os processos canónicos eram por alguns considerados anacronistas. Com frequência prevaleceu o "modelo terapêutico" no tratamento dos casos de comportamentos inoportunos dos clérigos. Esperava-se que o Bispo fosse mais capaz de "curar" do que de "punir". Uma ideia demasiado optimista em relação aos benefícios das terapias psicológicas determinou muitas decisões que se referiam ao pessoal das dioceses e dos institutos religiosos, por vezes sem considerar adequadamente as possibilidades de uma recaída.

Contudo, casos relativos à dignidade do Sacramento da Penitência, depois do Concílio permaneceram na Congregação para a Doutrina da Fé (ex-Santo Ofício; o nome foi mudado em 1965), e a Instrução Crimen sollicitationis ainda foi usada para estes casos até às novas normas estabelecidas pelo motu proprio Sacramentorum sanctitatis tutela, de 2001.

No período sucessivo ao Concílio Vaticano II, foram apresentados à Congregação para a Doutrina da Fé poucos casos relativos a comportamentos sexuais inoportunos do clero relativos a menores: alguns destes casos estavam relacionados com o abuso do Sacramento da penitência; outros podem ter sido enviados entre os pedidos de dispensa das obrigações da ordenação sacerdotal e do celibato (prática por vezes definida "laicização"), que foram tratadas pela Congregação para a Doutrina da Fé até 1989 (de 1989 a 2005 a competência para tais dispensas passou à Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos; de 2005 até hoje, os mesmos casos são tratados pela Congregação para o Clero).

O Codex iuris canonici promulgado pelo Papa João Paulo II em 1983 renovou a disciplina relativa ao cân. 1395, §2: "O clérigo que tenha cometido outros delitos contra o sexto preceito do Decálogo, se o delito foi feito com violência, ou ameaças, ou publicamente, ou com um menor com menos de 16 anos, seja punido com penas justas, não excluída a demissão do estado clerical, se a situação o exigir". Segundo o CDC de 1983 os processos são celebrados nas Dioceses. Os apelos das sentenças judiciárias podem ser apresentadas à Rota Romana, enquanto os recursos administrativos contra os decretos penais são propostos à Congregação para o Clero.

Em 1994, a Santa Sé concedeu um indulto aos Bispos dos Estados Unidos: a idade para definir o delito canónico de abuso sexual de um menor foi elevada a 18 anos. Além disso, o tempo para a prescrição foi alargado a um período de 10 anos calculado a partir do completamento do 18º ano de idade da vítima. Foi indicado explicitamente aos Bispos que realizassem os processos canónicos nas Dioceses. Os apelos foram reservados à Rota Romana, os recursos administrativos à Congregação para o Clero. Durante este período (1994-2001) não foi feita referencia alguma à antiga competência do Santo Ofício para estes casos.

O indulto de 1994 para os Estados Unidos foi alargado à Irlanda em 1996. Entretanto, a questão de procedimentos especiais para casos de abuso sexual foi debatida na Cúria Romana. No final, o Papa João Paulo II decidiu incluir o abuso sexual de um menor de 18 anos cometido por um clérigo no novo elenco dos delitos canónicos reservados à Congregação para a Doutrina da Fé. A prescrição para estes casos foi estabelecida em 10 anos a partir do completamento do 18º ano de idade da vítima. A nova lei, um motu proprio com o título Sacramentorum sanctitatis tutela, foi promulgada a 30 de Abril de 2001. Uma carta assinada pelo Cardeal Joseph Ratzinger e pelo Arcebispo Tarcisio Bertone, respectivamente Prefeito e Secretário da Congregação para a Doutrina da Fé, foi enviada a todos os Bispos católicos a 18 de Maio de 2001. A carta informava os Bispos acerca da nova lei e dos novos procedimentos que substituíam a Instrução Crimen sollicitationis.

Nela eram antes de tudo indicados quais fossem os delitos mais graves, quer contra a moral quer na celebração dos sacramentos, reservados à Congregação; além disso, eram indicadas as normas processuais especiais a serem observadas nos casos relativos a tais graves delitos, incluídas as normas relativas à determinação das sanções canónicas e à sua imposição.

Os delicta graviora reservados à Congregação para a Doutrina da Fé eram enumerados do seguinte modo:

no âmbito dos delitos contra a santidade do augustíssimo sacramento e sacrifício da Eucaristia:

1° a ablação ou a conservação para finalidades sacrílegas, ou a profanação das espécies consagradas (cân. 1367 CDC e cân. 1442 CCIO, Código dos Cânones das Igrejas Orientais);

2° a tentada acção litúrgica do sacrifício eucarístico ou a simulação da mesma (cân. 1378 §2 n. 1 CDC e 1443 CCIO);

3° a concelebração proibida do sacrifício eucarístico juntamente com ministros de comunidades eclesiais, que não têm a sucessão apostólica nem reconhecem a dignidade sacramental da ordenação sacerdotal (câns. 908 e 1365 CDC; câns. 702 e 1440 CCIO);

4° a consagração para finalidades sacrílegas de uma matéria sem a outra na celebração eucarística, ou também de ambas fora da celebração eucarística (cf. cân. 927 CDC);

no âmbito dois delitos contra a santidade do sacramento da penitência:

1° a absolvição do cúmplice no pecado contra o sexto mandamento do Decálogo (cân. 1378 §1 e cân. 1457 CCIO);

2° a solicitação, no âmbito ou por ocasião ou com o pretexto da confissão, ao pecado contra o sexto mandamento do Decálogo, se é finalizada a pecar com o próprio confessor (cân. 1387 CDC e 1458 CCIO);

3° A violação directa do sigilo sacramental (câns. 1388 §1 e 1456 CCIO);

por fim, no âmbito dos delitos contra a moral:

1° o delito contra o sexto mandamento do Decálogo cometido por um clérigo com um menor com menos de 18 anos (cf. cân. 1395 §2 CDC).

As normas processuais a serem seguidas nestes casos eram assim indicadas:

caso o Ordinário ou o Hierarca tenha notícia, pelo menos verosímil, do cometimento de um delito reservado, depois de ter feito uma averiguação preliminar, o mesmo indique à Congregação para a Doutrina da Fé, a qual (excepto a hipótese, por particulares circunstâncias, de atribuição do caso a si) deveria indicar ao Ordinário ou ao Hierarca como proceder, salvaguardando o direito de apelar a sentença de primeiro grau unicamente diante do Supremo Tribunal da mesma Congregação;

a acção criminosa, nos casos de delitos reservados à Congregação para a Doutrina da Fé, se extinguir por prescrição num decénio. Era além disso previsto que a prescrição decorresse nos termos dos câns. 1362 §2 CDC e 1152 §3 CCIO, com a única excepção do delito contra sextum cum minore, sendo que neste caso é sancionado que a praescritio decorra a partir da data em que o menor tivesse completado 18º anos de idade;

nos Tribunais constituídos junto dos Ordinários ou dos Hierarcas, relativamente a estas causas, possam desempenhar validamente o cargo de juiz, de promotor de justiça, de notário e de patrono unicamente sacerdotes que, quando a instância no Tribunal se tivesse de qualquer modo concluído, todas as actas da causa fossem transmitidas quanto antes ex officio à Congregação para a Doutrina da Fé.

Além disso, estabelecia-se também que todos os Tribunais da Igreja latina e das Igrejas orientais católicas fossem obrigados a observar os cânones sobre os delitos e as penas sobre o processo penal de ambos os Códigos, juntamente com as normas especiais, emanadas pela Congregação para a Doutrina da Fé.

À distância de nove anos da promulgação do Motu Proprio Sacramentorum sanctitatis tutela, a Congregação para a Doutrina da Fé, com a intenção de melhorar a aplicação da lei, considerou necessário introduzir algumas mudanças a estas normas, sem modificar o texto na sua inteireza, mas só em algumas das suas partes.

Depois de um atento e cuidadoso estudo das mudanças propostas, os membros da Congregação para a Doutrina da Fé submeteram ao Romano Pontífice o resultado das próprias determinações que, o mesmo Sumo Pontífice, com decisão de 21 de Maio de 2010, aprovou, ordenando a sua promulgação.

O texto das Normas sobre os delicta graviora actualmente em vigor é o aprovado pelo Santo Padre Bento XVI a 21 de maio de 2010.

domingo, 20 de junho de 2010

A corda sensível do coração dos jovens: É possível!

“Em todo jovem, mesmo no mais rebelde, existe um ponto acessível ao bem; o primeiro dever do educador é descobrir este ponto, esta corda sensível do coração e tirar proveito disto”. O autor desta frase é considerado um dos maiores educadores de todos os tempos: São João Bosco.

Para aqueles educadores que acreditam no projeto de Dom Bosco, educar é estar presente na vida dos educandos, é amar os jovens e fazer com que eles se dêem conta de que são amados. Contudo, os que se empenham em educar nem sempre conseguem estabelecer laços com os que precisam ser educados e, mais, não conseguem encontrar o “ponto acessível” do qual falava Dom Bosco.

Apesar das dificuldades, a responsabilidade do educador é a de estar atento aos “discursos” existentes em meio às tribos juvenis. Tais discursos estão na família, na rua, na escola, nas resistências manifestas, nas preferências, na vestimenta e no comportamento, nos modos de viver a afetividade, nos grupos, nos medos que expressam, nas pichações, nas respostas que encontram para as perguntas que se fazem, no fenômeno religioso, na economia, na política, nas organizações das quais participam, enfim, nos “pátios” que Dom Bosco citava como lugar do agir-pedagógico dos educadores.

Os educadores não são reféns dos discursos juvenis, mas têm a função de contextualizar e problematizar, de mediar a construção do conhecimento, de ampliar o universo cultural e apontar possíveis saídas para as crises. Podemos dizer que estamos sendo convidados para uma honradez não só com a verdade, mas com a própria realidade. Recordo, neste contexto, comentários e reflexões que Jon Sobrino fez a partir do terremoto de El Salvador, em 2001. Ele fala do deixar a realidade falar e relembra Karl Rahner dizendo que “a realidade quer tomar a palavra”, isto é, “se a palavra se fez realidade (carne, sarx), a realidade quer fazer-se palavra”, sendo importante que se escute, também, a “geografia” onde se escuta a palavra da realidade. Segundo Sobrino, “chegar a ser humano é dar voz e palavra à realidade, quando esta é silenciada e oprimida, colaborar com sua balbuciação para que se transforme em palavra clara”. Falar em emergência e percepção de valores na juventude é falar de um terremoto em que ela está mergulhada como grito silenciado.

Quando a juventude acende a fogueira das manifestações radicais, sejam em protestos pseudopolíticos ou em infrações às leis civis, há, em todos esses casos, um grito abafado que só vem à tona através de ações que dêem visibilidade e causem certo transtorno a quem o grito é destinado. Em vista da juventude empobrecida de nossas periferias, o grito tem como destino a sociedade injusta e excludente que marginaliza seus sonhos e esperanças, contudo, ele é silenciado por outra parte da sociedade, que engana e escraviza, aparecendo, entre outros, nos rostos de partidos políticos, comunidades religiosas e sistemas educacionais falidos e vendidos.

Cabe aos educadores a difícil tarefa de transpor tudo aquilo que é sintoma deste grito e agir diretamente em sua causa. Todo ato maquiado por rebeldia trás em si um agente propulsor, que o leva a tal por não haver possibilidade de gritar contra seus “opressores”. Ao encontrarmos esta causa, talvez, poderemos também encontrar a “corda sensível” da qual falava Dom Bosco e, para isso, é necessário que haja afinidade, familiaridade entre educadores e educandos, ao ponto destes verem o educador como aquele para quem podem gritar sem serem punidos, mostrar suas fraquezas e não serem lesados. Familiaridade é sinônimo de confiança e essa só existe na medida em que o jovem se sente amado, cuidado e protegido.

“Não basta amar os jovens; é preciso que eles se sintam amados!” Dom Bosco sabia disso e, por isso, foi um grande educador, além de grande homem. Nós, educadores, precisamos ter coragem de agir com ousadia e ternura como ele agiu, para tocarmos, ao menos por alguns segundos, os corações de nossos educandos.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Oráculos da verdade

Por Frei Betto

Cada vez mais, as pessoas deixam de pensar por sua própria cabeça.


O filósofo alemão Emmanuel Kant, num de seus brilhantes textos – “O que é o Iluminismo?” – sublinha um fenômeno que na cultura televisual que hoje impera é cada vez mais generalizado: as pessoas deixam de pensar por si mesmas. Preferem se colocar sob proteção dos “oráculos da verdade”: a revista semanal, o telejornal, o patrão, o chefe, o pároco ou o pastor. Esses os guardiões da verdade que velam para não nos permitir incorrer em “equívocos”. Graças a seus alertas sabemos que as mortes nas prisões de Bagdá e Guantánamo são acidentes de percurso comparadas à morte de um preso comum, disfarçado de político, num hospital de Cuba, em decorrência de uma greve de fome. São eles que nos tornam palatáveis os bombardeios dos Estados Unidos no Iraque e no Afeganistão, dizimando aldeias, e nos fazem encarar com horror a pretensão de o Irã fazer uso pacífico da energia nuclear, enquanto seu vizinho, Israel, tem a bomba atômica. São eles que nos induzem a repudiar o MST em sua luta por reforma agrária. Enquanto o latifúndio invade a Amazônia, desmata a floresta e usa mão de obra escrava. É isso que, na opinião de Kant, faz do público Hausvieh, “gado doméstico”, de modo que todos aceitem permanecer confinados no curral, cientes do risco de caminhar sozinho. Como gado, o consumidor busca sua segurança na identificação com o rebanho, capaz de tornar homogêneo seu comportamento, criando padrões universais de hábitos de consumo através de uma propaganda que imprime a sensação de ter o desejo correspondido pela mercadoria adquirida. E quanto mais cedo se inicia esse adestramento ao consumismo, maior o lucro. O ideal é cada criança com um televisor no próprio quarto.
Para se atingir esse objetivo é preciso incrementar uma cultura do egoísmo como regra de vida. Não é por acaso que quase todas as peças publicitárias se baseiam na exacerbação de um dos sete pecados capitais. Todos eles, sem exceção, são tidos como virtudes nessa sociedade neoliberal corroída pelo afã consumista. A inveja é estimulada no anúncio da família que possui um carro melhor que o de seu vizinho. A avareza é o mote das cadernetas de poupança. A cobiça inspira as peças publicitárias, do último modelo de telefone celular ao tênis de grife. O orgulho é sinal de sucesso dos executivos assegurados por planos de saúde eterna. A preguiça fica por conta das confortáveis sandálias que nos fazem relaxar ao sol. A luxúria é marca registrada dos jovens esbeltos e das garotas esculturais que desfrutam vida saudável e feliz ao consumirem bebidas, cigarros, roupas e cosméticos. Enfim, a gula envenena a alimentação infantil na forma de chocolates, refrigerantes e biscoitos, induzindo a crer que sabores são prenúncios de amores. Na sociedade neoliberal, a liberdade se restringe à variedade de escolhas consumistas; a democracia, em votar nos que dispõem de recursos milionários para bancar a campanha eleitoral; a virtude, em pensar primeiro em si mesmo e encarar o semelhante como concorrente. Esta a verdade proclamada pelos oráculos do sistema.

sábado, 3 de abril de 2010

É tempo de Ressurreição!

“Nos galhos secos de uma árvore morta
Onde ninguém jamais pudesse imaginar
O criador viu uma flor a brotar”.

A vida é feita de limites, de fronteiras que devemos transpor todos os dias. Estar diante de seus limites é como estar diante da necessidade de Deus. É como o filho, que diante do perigo grita pela presença do pai. Jesus é exemplo disso. Seu sofrimento e seu medo, na Sexta-Feira Santa, mostraram que ninguem está livre de limites. O limite de Jesus foi abertamente demonstrado por um grito que ecoou por todos os cantos da Terra: “Pai, Pai, por que me abandonou?” É o grito do filho que clama pelo socorro de seu pai. Jesus morreu, mas não esperava que algo grandioso acontecesse para livrá-lo daquele fim. Ele entregou-se inteiramente às mãos de Deus: “Pai, em tuas mãos eu entrego o meu espírito!”.
Aquele homem pregado na cruz não se prendeu à força da morte. Não transformou o resto de sua vida num calvário eterno, tampouco se revestiu de um espírito de vítima. No silencio da terra, as sementes precisam se entregar ao duro movimento da morte para que possam se transformar em frutos.
Após sua morte, o silencio tomou conta de toda a Terra. Os dias que se seguiram foram de inquietante escuridão. É a vida. É a morte. É a agonia de cada rosto. Reassumir a vida depois de uma tragédia de tamanha complexidade é sempre um desafio sofrido, dolorido. No Sétimo dia da semana, o dia dedicado a Deus, a certeza era de que muitos estavam machucados pela perda de Jesus, muitos mais estavam machucados com o fim de uma esperança.
Mas o sol estava voltando a brilhar, o tempo era de ressurreição. as mulheres que foram visitar o sepulcro de Jesus voltaram com outra certeza: O Senhor decidiu prosseguir! Era o início da ressurreição, o anúncio de que o túmulo estava vazio. A vida venceu a morte! “Enquanto houver sol... ainda haverá!”. Enquanto houver um sol brilhando, todas as noites são passageiras. A vitória da vida sobre a morte revelou que o Sol ainda brilha como outrora, com um significado todo novo: Agora conhecemos o Sol, o nosso Sol é Jesus, o Cristo, que Ressuscitou dos mortos e deu-nos um novo sentido para a vida.
Sua Ressurreição só foi possível à medida que ele amou o mundo. O amor é uma força capaz de nos levar a sacrifícios concretos, a ponto de tocarmos a nossa mais profunda humanidade. Sempre que amamos de verdade, extraímos o que temos de mais puro em nossa alma. O amor nos faz chegar a lugares nunca antes imaginados, no caso de Jesus, à Vida Nova.

Que o Amor seja a semente semeada no silencio da terra, colheremos o que a gente semear!

Uma Fraterna e Santa Páscoa!

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